Memórias de Família

Memórias de Família

O médico que andou desaparecido na Flandres

Luís Carlos da Costa Guerra Charters d’Azevedo acabara de se licenciar em Medicina e Cirurgia quando foi mobilizado para a frente europeia da I Grande Guerra, na Flandres francesa

Partiu a 31 de Agosto de 1916 como tenente miliciano médico do Corpo Expedicionário Português, informa o seu neto, o engenheiro e escritor Ricardo Charters d’Azevedo, que se tem dedicado a investigar a história familiar.

“Andava pela frente, num automóvel-ambulância, com um chauffeur e um enfermeiro”, explica o neto, que era ainda criança quando o avô morreu de cancro, em 1953, com pouco mais de 60 anos de idade. Ricardo Charters d’Azevedo nunca soube quem conduzia o seu avô, mas veio a conhecer o seu enfermeiro: “Encontrei-o mais tarde em Lisboa: era barbeiro na Rua do Ouro”.

Uma das histórias mais curiosas da passagem de Luís Carlos Charters d’Azevedo é justamente a de um improvável encontro. Nos campos da Flandres, em plena guerra, deu de caras com um seu conterrâneo de Leiria, o padre José Ferreira de Lacerda, que andava perdido. O próprio padre Lacerda evocará o episódio no jornal O Mensageiro, em Outubro de 1939, quando a Europa acabava de mergulhar de novo na guerra.

Citando excertos de uma carta que o amigo médico lhe endereçara –   "Agora que novamente na fronteira franco-alemã se desenvolvem acontecimentos semelhantes aos da Grande Guerra, mais me recordo do nosso encontro numa manhã cinzenta, fria e nevada numa estrada perto de Roquetoire (…)” –, o padre Lacerda conta o episódio aos leitores de O Mensageiro: “Nessa manhã saíra de Teroane em procura de soldados de Leiria e dum colega capelão. É certo que ia munido duma carta e estavam sinalizadas as estradas, mas tantas voltas dei que não sabia onde estava. Estradas, caminhos, casas era tudo cinzento e igual. Valeu-me o encontro felicíssimo com o meu querido amigo, que me indicou a posição e o caminho a seguir”.

E o padre evoca ainda as “dezenas e dezenas de feridos” que ajudou a meter em macas e a “mais de uma dezena” que ajudou a morrer, “recebendo as suas últimas palavras, recomendações para a família, objectos sagrados, cartas, retratos...”. Também Luís Carlos Charters d’Azevedo, nas suas funções de médico, esteve em posição tristemente privilegiada para testemunhar as horríveis consequências da guerra. Mas, “como muitos dos que viveram aquele horror, não gostava de contar o que lá passara”, diz o seu neto.

Nascido em Leiria em 1891, o futuro médico era neto de um grande proprietário na região, José Maria Henriques de Azevedo, 1º visconde de São Sebastião, e filho único do engenheiro Roberto Charters Henriques d’Azevedo. Quando partiu para a guerra, era já casado e pai de um filho, Roberto, que veio a ser o engenheiro Roberto Charters d’Azevedo, secretário-geral do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, director na Gulbenkian e autor de trabalhos pioneiros no campo da televisão experimental.

Na sua passagem pela guerra, Luís Carlos desempenhou funções na Coluna de Transporte de Feridos n.º 2, um trabalho que o levava a circular entre os postos avançado da frente de batalha, e foi ainda adjunto do chefe do Serviço de Saúde da 2ª Divisão.

Após a batalha de La Lys perdeu-se-lhe o rasto. “Esteve dois ou três meses desaparecido”, conta o seu neto, “até que alguém passou por um hospital militar inglês e lá estava ele”. Sabe-se pouco sobre este singular episódio, mas Ricardo Charters d’Azevedo imagina que, na confusão que se seguiu à destruição do destacamento português, o seu avô terá ido parar àquele hospital de campanha inglês e, “como teria muito que fazer, terá ficado por lá”. Com ascendentes britânicos na família – a sua avó era filha de um oficial inglês, William Charters, que veio para Portugal combater as tropas de Napoleão – o médico português relacionar-se-ia facilmente com ingleses, observa ainda o seu neto.

Certo é que foi licenciado do serviço militar em 1919 e recebeu a medalha da Vitória em 1920. Regressado a Portugal, trabalhou nos hospitais militares da Estrela e de Campolide e especializou-se depois em otorrinolaringologia. Pelo seu consultório de Lisboa passaram doentes célebres, como o marechal Carmona. Durante os meses de férias que passava na propriedade da família em Leiria, a Vila Portela, dava consulta gratuita aos seus conterrâneos.

 
 

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