Memórias de Família

Memórias de Família

As leituras no chalet rosa

O bisavô de Miguel Alegre conta nos seus apontamentos que na partida os homens choraram

Desde sempre que Miguel Alegre, de 18 anos, se lembra de passar boa parte das férias de Verão naquele chalet rosa, na aldeia de Valezim, no meio da Serra da Estrela. Entre os muitos retratos de antepassados que ali existem havia um que sobressaía e descreve-lhe a figura, “corpo magro, bigode preto, olhos penetrantes, sempre muito digno”. Conhecia-lhe também o nome: Albano Manuel de Senna Fonseca.

Mas o que dava corpo àquela pessoa, que não estava no chalet rosa mas que era como se estivesse, eram a quantidade de escritos do homem que era seu bisavô e que Miguel encontrava espalhados pela casa, em papéis, cadernos, sebentas, dentro de gavetas cheias de mofo. Desde os seus 12 anos aquelas leituras significaram que, sem sair de casa, sentia estar a ler histórias de aventuras, a descobrir tesouros no meio dos papéis.

Depois de tudo o que foi lendo, Miguel Alegre acredita hoje que foram “dois os anos definidores e aglutinadores de toda aquela vida: 1917 e 1918. A guerra, involuntária e inadvertidamente, constituía-se como pilar integrador daquela existência. Como poderia uma experiência tão curta influir de tal modo na essência de um homem nascido a 1888 e falecido a 1952?”, escreveu num texto em que reuniu algumas das suas reflexões sobre este bisavô que conta transformar em livro.

Sobre a partida para guerra Miguel leu que o bisavô, que era capitão de artilharia, quis chorar: “Entrámos nas carruagens a dissimular as lágrimas escondidas, há quem tenha a pretensão de estar alegre para se ajudar, mas todos se sentem autómatos empurrados por força desconhecida. Entramos no túnel e naquela penumbra de ambiente exterior e interior, ouvem-se os primeiros soluços e, logo a seguir, a voz do meu Comandante Tenente-Coronel Pires Leitão que, a chorar também, nos diz ‘Chorem à vontade, rapazes, que eu também estou a chorar!’ […] Entrávamos em mundo novo. Ia começar a viagem.”
Numa recordação de batalha o bisavô de Miguel Alegre relatava que “às 10 e meia da noite, dois bombas de aeroplano inimigo mataram e feriram quase metade dos meus soldados, dos meus melhores soldados. Horríveis os estragos, terríveis os momentos de sofrimento! […] Ficavam no cemitério de Steenbecque os que morreram logo, ficando decepados no acampamento.”

Miguel Alegre lembra ao PÚBLICO outra cena escrita que o marcou, e que mostra o que descreve como um momento de “insurreição” e outro de “imoralidade”: “Revolta na Infantaria 7 por não querer mais trincheiras. Retira com os oficiais e passam pelo meu acantonamento em St. Venant. Enchem os ouvidos dos meus soldados […] de frases que preparam para a insubordinação”. Num dos parágrafos que transcreveu para o seu caderno o bisavô descreve uma casa que os militares portugueses encontram abandonada, na povoação francesa de Steenbecque, em que os donos tinham fugido e deixado tudo, “imagens, postais, retratos! Tudo! Até roupas… Que os soldados roubavam e estragavam. Era isto a guerra…”

No resto da sua vida, o bisavô Albano Manuel de Senna Fonseca pouco falou da guerra em família. As experiências mais marcantes deixou-as no papel e Miguel Alegre agradece-lhe. “Há muita gente que morre e não deixa nada, ele deixou tanta coisa escrita que se acaba por conhece-lo”. Estas leituras de Verão terão contribuído para a sua escolha de estudos. Miguel Alegre está quase de partida para Inglaterra, onde vai começar a tirar História na University College London. Antes disso, ainda vai passar as tradicionais semanas férias ao chalet rosa onde descobriu o que o avô viu e sentiu há mais de 100 anos.
 

  • José António Rebelo Silva, prior da freguesia de Colares desde 2006, ofereceu-nos uma missa que nos comoveu e, espantosamente, consolou.

  • Os dias contigo são os bocadinhos de manhã, tarde e noite que são avaramente permitidos aos mais felizes.

  • O que contam os descendentes de quem viveu a guerra de forma anónima? Cem anos depois do início da I Guerra Mundial, já sem a geração do trauma, a memória reconstrói-se e tenta-se a biografia portuguesa do conflito europeu.Durante três dias, os testemunhos chegaram ao Parlamento na iniciativa Os Dias da Memória.

  • Ao contrário da generalidade dos militares portugueses evocados nestas páginas, o contra-almirante Jaime Daniel Leotte do Rego (1867-1923) não precisa de ser resgatado do esquecimento

  • Joaquim de Araújo foi uma testemunha privilegiada de alguns dos mais duros combates da guerra em Moçambique

Comentários

Os comentários a este artigo estão fechados. Saiba porquê.