Memórias de Família

Memórias de Família

Um pé ferido salvou-o do massacre de Cuangar

Depois de ter ficado ferido José Joaquim Fernandes levou três meses a ser transportado

As histórias que José Joaquim Fernandes contou ao filho, Manuel Leal Fernandes, acabariam por aparecer no livro que este escreveria, muitos anos depois de o pai ter participado, em Angola, na Grande Guerra. Em Angola: As Brumas do Mato, Manuel conta, referindo-se ao pai: “O massacre de Cuangar, lá nas terras do fim do mundo, na imensa Angola, nunca lhe saiu da memória. Aí passara quase dois anos. Um ataque traiçoeiro massacrara amigos e companheiros de armas. Um golpe inesperado num pé que o levara a ser evacuado para o Hospital de Sá da Bandeira livrara-o da morte.”

José nascera muito longe do mato africano. Foi em Bismula, Sabugal, que o filho de João Fernandes e Luísa Nunes nasceu, a 25 de Maio de 1891. Mas o concelho do interior do país era demasiado pequeno e apertado para quem aprendera a ler e escrever e tinha sede de aventura. Com 17 anos perdeu a mãe e, a 5 de Agosto de 1911, assentou praça no Regimento de Infantaria 12, na Guarda, e a 12 de Janeiro de 1912 foi incorporado no 1.º Batalhão. A 29 de Abril, finda a instrução, recusa-se a voltar a casa e oferece-se, em vez disso, para substituir um soldado recrutado para África.  

Por aí andou por Luanda, Moçâmedes, Sá da Bandeira e Cuangar. E foi neste posto fronteiriço que a Grande Guerra o apanhou, já como membro da 1.ª Companhia Europeia de Infantaria de Angola.

O soldado português esteve colocado em Cuangar entre 26 de Dezembro de 1912 e 1 de Agosto de 1914, dia em que ficou gravemente ferido num pé e, sem meios de socorro convenientes nas imediações, foi evacuado para o hospital de Sá da Bandeira. O caminho, contudo, foi penoso. José contou ao filho que, transportado num carro de bois, levou três meses a atingir o destino, sempre acompanhado pelo medo de perder o pé e a perna, que se foi aguentando à custa de água, sal e plantas locais.

Quando, finalmente, chegou ao hospital, já as tropas alemãs tinham atravessado o rio e atacado o posto fronteiriço, a 31 de Outubro. Morreram 22 pessoas, incluindo dois oficiais, um sargento, cinco soldados europeus e treze africanos, além de dois civis, o comerciante Sousa Machado e uma mulher. Foi no hospital que o português soube do incidente que foi conhecido como “massacre de Cuangar” e também que alguns colegas tinham conseguido sobreviver, fugindo pelo mato.

Após a convalescença, José passa a integrar a 4.ª Companhia de Depósito de Angola, a partir de 14 de Maio de 1915 e é aí que aguarda o regresso a Lisboa. Embarca em Moçâmedes, a 18 de Julho, no paquete Zaire, e termina o serviço militar já na capital portuguesa, a 9 de Setembro de 1915, como refere a caderneta militar que Manuel Fernandes fez chegar à investigadora Manuel Portela, do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

O serrano que se voluntariara para ser soldado em África, para conhecer o mundo, acabou por regressar a Bismula e foi aí, na sua casa, que relatou ao filho, vezes sem conta, as histórias vividas na Grande Guerra em África.
 

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