Memórias de Família

Memórias de Família

O médico que foi para a guerra protegido por uma promessa

A intervenção do médico valeu-lhe a Cruz de Guerra

Luís António Martins Raposo não tinha qualquer apetência por guerras. Não sonhava em ser soldado nem em combater, de arma ao ombro, nem sequer em ser herói. O que Luís queria era ser médico e, por isso, é que deixou Caçarelhos, em Vimioso, e rumou ao centro do país, para ingressar na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Mas a Grande Guerra havia de se intrometer no futuro que, porventura, idealizara, e Luís lá partiu para França, enquanto a sua noiva fazia promessas à santa da aldeia, ansiosa pelo regresso do médico.

Nascido a 20 de Maio de 1892, Luís concluiu o curso de Medicina em 1916, o ano da mobilização portuguesa para a guerra. Nas Memórias que escreveu, dedicadas à família, o transmontano recorda esses dias. “Em fins de Abril do meu 5.º e último ano de Curso (1916) soube na minha aldeia, onde gozava as últimas férias da Páscoa como estudante, que havia sido mobilizado para uma Divisão de Instrução em Tancos. Tratava-se da primeira e até essa altura inocente manifestação da nossa entrada na 1.ª Guerra Mundial”, escreveu o médico.

Luís Raposo explica depois como foi “clinicando” na aldeia de Caçarelhos, “para matar o tempo”, até que, no último dia do ano, foi “convocado para a guerra”. O transmontano iria para França como médico do Corpo Expedicionário Português. “Ia, assim, iniciar forçadamente uma carreira para a qual jamais me sentira com vocação”, escreveu, mais tarde, nas suas memórias.

O médico descreveu, depois, vários episódios da sua passagem pelas trincheiras, em França. Desde o dia indefinido de Fevereiro em que desembarcou em Brest (“Frio de gelar, como se calcula”), passando pelo percurso até Aire-Sur-La-Lys, em que viveu “três dias de frio e de fome” como não se lembrava de ter passado. Luís traça o trajecto até Quernes, onde permaneceu “até depois do fatídico 9 de Abril” e recorda, depois “com emoção” o baptismo de fogo que experimentou “na noite de Santo António”, a 12 de Junho. “Súbita e inesperadamente os alemães desencadearam um fortíssimo ataque com artilharia, morteiros, metralhadoras e gases asfixiantes, como que a presentear as tropas portuguesas pela sua recente entrada em actividade”, escreveu Luís Raposo. Ele ocupou-se do Posto de Socorro da frente e garante que durante toda a noite não houve “um minuto de descanso, tantos os feridos e gaseados assistidos e tantas as deficiências compreensivelmente verificadas neste primeiro e delicado contacto com a guerra a sério”. Sobre os gaseados que lhe passaram pelas mãos, o médico escreveria: “Dos muitos quadros temerosos e cruéis oferecidos pela guerra foi este, sem dúvida, o mais impressionante.”

A intervenção do médico valeu-lhe a Cruz de Guerra e, em Fevereiro de 1919, Luís Raposo regressava a Portugal, “num navio inglês improvisado de hospital”. À sua espera estava Antónia de Jesus Moreira, a sua noiva.

Quando viu o médico partir para a guerra, Antónia dirigiu-se à Nossa Senhora da Batalha, imagem que existia na capela da sua terra, em Peredo, Macedo de Cavaleiros, e fez-lhe uma promessa. Voltasse o seu Luís intacto da guerra e ela, Antónia, vestiria a Santa da Batalha de cetim e ouro.

O vestido branco, debruado a ouro, e o manto azul, também debruado, foram feitos em Braga ou Penafiel e ainda existem. Quanto a Antónia, casou com Luís e juntos tiveram três filhos. Luís pôde, então, dedicar-se a exercer Medicina longe da guerra e, ao longo do seu percurso profissional – como recorda o seu neto Miguel Raposo e outros familiares do médico, em depoimentos compilados pela investigadora Margarida Portela, do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa – foi responsável por instalar em Coimbra uma delegação do Instituto Português de Oncologia. Morreu um mês antes de completar 93 anos.
 

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