Memórias de Família

Memórias de Família

Um alferes monárquico na guerra dos republicanos

Má fortuna, a do monárquico José Estevão Coelho de Magalhães, enviado para as trincheiras da Flandres, como alferes do Corpo de Artilharia Pesada (CAP), a travar uma guerra que não era a sua, ao serviço de um governo que desprezava e de um regime em que se não revia.

Mas era um patriota e serviu com denodo: a sua documentação militar, investigada pela historiadora Margarida Portela, não regista a menor censura e, pelo contrário, inclui um louvor, reconhecendo o zelo, dedicação e capacidade de sacrifício que demonstrara na frente de batalha.

Único varão entre seis irmãos – um outro rapaz morrera ainda bebé –, José Estevão sobreviveu à guerra e regressou à casa paterna em Abril de 1919. Vinha surdo – “com os bombardeamentos, ensurdeceu por tal forma que era preciso escrever-lhe tudo”, conta a sua irmã mais nova, Maria José, numas memórias de família –, mas mostrava-se alegre e não aparentava outros danos físicos ou psicológicos. O pior parecia ter passado e o futuro mostrava-se risonho. Por pouco tempo. Em Janeiro de 1822, José Estevão adoeceu gravemente, tendo morrido poucos meses depois, no dia 23 de Abril, com apenas 28 anos.

A família sempre atribuiu esta morte precoce aos gaseamentos sofridos no front. O seu impedido – que depois da guerra se tornaria seu criado de quarto – contou que certa vez tinham sido fortemente gaseados e que José Estevão, se expusera mais do que qualquer outro. À falta de máscaras anti-gás, o alferes pusera todos os soldados a inalar o pouco amoníaco de que dispunham, não tendo guardando nenhum para si próprio.

Rita Van Zeller, neta da irmã mais nova de José Estevão Coelho de Magalhães, admite que “estas histórias heróicas” que circulam nas famílias são sempre difíceis de confirmar, mas tanto os louvores da hierarquia militar à capacidade de liderança do seu tio-avô, como o carácter que este demonstrou noutras circunstâncias, tornam o episódio bastante plausível.

Tendo desistido da carreira militar com que sempre sonhara por não querer servir o regime republicano, José Estevão estudava Engenharia Civil na Bélgica quando a guerra rebentou e, em Agosto de 1914, os alemães invadiram o país. A família andou com o coração nas mãos, sem notícias dele e sabendo-o na zona ocupada. E já começavam a desesperar, quando  finalmente apareceu em casa. Poderia, na verdade, ter chegado mais cedo e corrido menos riscos na viagem, mas decidira juntar-se a um grupo de compatriotas, cujo regresso a Portugal ajudou a financiar.

A quinta que Eça gabou

José Estevão Coelho de Magalhães nasceu a 2 de Setembro de 1893 na bela Quinta do Mosteiro, na Maia, que a sua avó paterna, Rita de Moura Miranda, adquirira em 1874, e onde o seu pai, o conselheiro Luiz de Magalhães, o conhecido intelectual da geração de 70, recebia convidados tão ilustres como Antero de Quental, Oliveira Martins ou Eça de Queiroz, que faz mesmo referência à propriedade: trocando-lhe deliberadamente o nome para Quinta de Refaldes, elogia-lhe a “serenidade rural” numa das cartas de Fradique Mendes.

“Estou vivendo pinguemente em terras eclesiásticas, porque esta quinta foi de frades”, escreve Eça por interposto Fradique. “Agora pertence a um amigo meu, que é, como Virgílio, poeta e lavrador, e canta piedosamente as origens heróicas de Portugal, enquanto amanha os seus campos e engorda os seus gados”.

O alferes do CEP era neto e homónimo do célebre parlamentar e jornalista José Estevão (1809-1862), um dos “bravos do Mindelo”, cujos feitos heróicos durante o cerco do Porto se tornaram lendários. Fundador do influente jornal liberal Revolução de Setembro, orador inflamado, oposicionista crónico, grão-mestre da Maçonaria, político envolvido em sucessivas conspirações e revoltas, várias vezes exilado, José Estevão dificilmente poderia estar mais à esquerda no arco político da monarquia constitucional. Nunca pactuou, todavia, com as tendências republicanas que já no seu tempo começavam a ganhar influência nos meios liberais mais radicalizados.

O seu filho, Luiz de Magalhães, herdou-lhe essas convicções monárquicas. Ministro dos Negócios Estrangeiros no governo de João Franco, exilou-se em Londres após a implantação da República e veio mais tarde a envolver-se no golpe de que resultaria, em 1919, a efémera Monarquia do Norte. Condenado e preso, estava ainda na cadeia quando o seu filho, o alferes José Estevão Coelho de Magalhães, regressou da guerra.

“A família era toda monárquica e, portanto, não apoiava a entrada de Portugal na guerra, que via como uma manobra do governo republicano para se legitimar internacionalmente”, disse ao PÚBLICO Rita van Zeller. O que não impediu o seu tio-avô, uma vez mobilizado, de “cumprir o que achava ser a sua obrigação”.

Pelas memórias deixadas por duas filhas de Luiz de Magalhães, percebe-se que José Estevão era adorado pelos pais e pelas irmãs e que a sua morte deve ter constituído um duríssimo golpe. E talvez também por isso, a sua memória continua hoje tão viva na família, passados quase cem anos sobre a sua morte. Aos muitos objectos do seu tio-avô que a família conserva, Rita van Zeller veio recentemente juntar uma série de fotografias totalmente desconhecidas, digitalizadas a partir de um envelope com negativos que tinha ficado esquecido. Mostram José Estevão acompanhado de vários camaradas, provavelmente já na Flandres francesa.

A investigação de Margarida Portela à sua documentação militar permite resumir o essencial do seu percurso desde que embarcou para Inglaterra a 18 de Janeiro de 1918, integrado no CAP. A 2 de Março estava já em França e no final de Abril movia-se nas linhas da frente, trabalhando com as tropas britânicas. Ele que “não simpatizava nada com os ingleses”, diz Rita van Zeller, porque não lhes perdoara ainda a humilhação do Ultimato de 1890. 

Margarida Portela não descobriu indicações, no entanto, de que José Estevão tenha estado presente na fatídica batalha de La Lys, a 9 de Abril. Sabe-se que em Julho foi transferido para uma nova bateria de artilharia pesada, à qual ainda estava adstrito quando retirou da frente após o Armistício de 11 de Novembro.

Desconhece-se o seu paradeiro nos meses seguintes, mas em Março de 1919 encontrava-se em Cherbourg. A 15 de Abril embarcou em Brest, regressando finalmente a Portugal, à quinta onde nascera e onde não tardaria a morrer.  

 
 

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