Memórias de Família

Memórias de Família

Um poeta nas trincheiras

José Alagoinha com seus companheiros em França Miguel Madeira

O 2.º sargento José Alagoinha, enviado para as trincheiras da Flandres em Abril de 1917, era um patriota e era um poeta. Num caderno de campanha que levava para todo o lado, lêem-se estas quadras, parte de um extenso poema com data de 26 de Julho de 1918, que transcrevemos actualizando apenas a ortografia: “(…)Os portugueses na guerra/ Têm sido muito gabados/ Não deixam mal a terra/ Dos nossos antepassados. // Os pequenos portugueses/ Não receiam combater/ Noite e dia quantas vezes/ Sem dormir e sem comer. (…)”.

Alagoinha sabia que “Todos esperam o dia/Do fim à guerra ser dado”, como escreve no mesmo poema, mas enquanto esse dia não chegasse, havia que não fazer má figura. Foi o seu caso, a julgar pela documentação militar, que só regista louvores e que nada tem a apontar-lhe no capítulo disciplinar.

Era um homem sério e que estava interessado em seguir a carreira militar. Mas também não lhe faltava humor, e talvez isso o tenha ajudado a chegar à provecta idade de 96 anos.

Num outro poema do seu diário, dá divertida conta dos progressos que ia fazendo na aprendizagem da língua de Victor Hugo, que talvez treinasse com as “amigas francesas” cujas moradas – segundo contou ao PÚBLICO o seu bisneto José Luís Albuquerque Ferreira –, constavam do seu caderno, a par de “poemas, letras de canções que cantavam nas trincheiras” ou ainda relações das quantidades de alimentos (“batata, arroz, banha”) de que o seu grupo dispunha para vários dias.

"Dire dizem que é dizer/ Voir dizem que é ver/ Joli dizem que é bonito/ Palavreado tão esquisito/ Não consigo compreender// Água chamam-lhe de l’eau/ Conquistador conquerant/ Não faz mal ça ne fait rien/, O belo dizem que é beau/ Ao novo chamam nouveau/ Être arrivé ser chegado/ Boire dizem que é beber/ E não consigo compreender/ Porque tudo está mudado”, verseja Alagoinha num poema datado de “Brest, 20 de Agosto de 1918”.

Coma ajuda dos documentos que a família conservou e das informações prestadas pelo seu bisneto – que teve o privilégio pouco comum de ter podido conviver com o seu bisavô até aos 15 ou 16 anos –, a investigadora Margarida Portela reconstituiu o percurso deste soldado português da I Guerra.

Nascido a 4 de Novembro de 1894 na Quinta do Carmo, em Estremoz, foi alistado, como já se disse, em 1914. Promovido em 1916, era já 2.º sargento quando embarcou rumo a Brest, integrado no Corpo Expedicionário Português, no dia 21 de Abril de 1917, poucas semanas após se terem registado as primeiras baixas de soldados portugueses na frente europeia do conflito.

A caderneta militar de Alagoinha indica que este terá regressado a Portugal em Setembro de 1918, em circunstâncias que Margarida Portela está ainda a tentar apurar. Certo é que logo em Março de 1919 foi promovido a 1.º sargento, tendo-se casado no mesmo ano com Joaquina Rosa de Oliveira.

No final da década de 20 concluiu um curso da Escola Central de Sargentos, que depois lhe permitiu integrar o quadro auxiliar dos Serviços de Engenharia, escreve Margarida Portela, observando que o empenho em ascender na carreira foi uma constante no percurso de José Alagoinha. Um esforço coroado de êxito: em meados dos anos 60, quando estava em vias de se tornar septuagenário, ostentava já a patente de major e dirigia o Depósito Geral de Material de Engenharia.

Da sua passagem pela I Guerra, além do que se deduz do caderno que deixou, sobreviveram algumas memórias familiares. José Luís Albuquerque Ferreira lembra-se, por exemplo, de que a sua avó lhe contava que uma das funções do pai era avisar os seus companheiros de trincheira do momento em que tinham de colocar as máscaras anti-gás.

A máscara foi, aliás, um dos objectos que José Alagoinha trouxe consigo, a par do já referido caderno e de um curiosíssimo copo de chumbo trabalhado, que usava para beber água na frente de batalha. Uma recordação da guerra que, antes de o ser, era já um “souvenir”, mas da Exposição Universal de Paris, de 1900. Gravado em relevo no copo, vê-se um desenho do Palais de L’Electricité expressamente construído para a exposição parisiense.

Não se sabe que estranhas circunstâncias levaram este copo às mãos de um rapaz de Estremoz, mas é curioso que este objecto, símbolo das promessas científicas e técnicas de um século que nascia sob o signo da esperança, fosse parar, década e meia mais tarde, às trincheiras dessa guerra a que justamente chamaram o suicídio da Europa. 
 

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