Ele está na base do sistema, mas fora da Constituição

Nos últimos anos, a expressão princípio da confiança entrou na linguagem política portuguesa trazida pela mão dos juízes do Tribunal Constitucional (TC), que nele se baseiam para justificar declarações de inconstitucionalidade. A confiança no Estado foi evocada a propósito de cortes de complementos de reforma dos trabalhadores dos transportes, de despedimentos no Estado ou de cortes de salários e de pensões.

Mas quem consultar uma Constituição da República em papel ou na versão digital através do computador não encontrará escrito no texto fundamental a expressão princípio da confiança, nem a referência à ideia que ele expressa e que é a da confiança no Estado. Mesmo a palavra confiança surge apenas oito vezes, associada a pessoas de confiança, a moção de confiança, a voto de confiança. Mas nunca associada à ideia de Estado.

O que significa esta expressão e que conceito encerra que, não constando directamente na Constituição, está na base do sistema político e constitucional português? De que se fala de facto quando se argumenta com base no princípio da confiança?

Tiago Duarte, professor de Direito da Universidade Nova de Lisboa, reconhece ao PÚBLICO que “causa estranheza as pessoas não encontrarem o princípio da confiança na Constituição”. E explica que “isso é fruto da riqueza e do drama da Constituição”. Uma riqueza que consiste em “tudo o que emana dela, mas que não se lê lá”.

Trata-se da transposição jurídica e institucional do que é a confiança social, um conceito estruturante do contrato das sociedades modernas. “Em todas as sociedades a protecção social é importante, criou-se um consenso em que direita e esquerda dizem o mesmo sobre protecção social”, sublinha ao PÚBLICO o jurista José Miguel Júdice. Deste modo, o “princípio da confiança não opera no quadro fechado de uma relação jurídica entre duas pessoas”, explica José António Pinto Ribeiro ao PÚBLICO, jurista e fundador do Fórum Justiça e Liberdade. É um conceito aberto, que evolui de acordo com o momento e a conjuntura em que as sociedades vivem.

Formalmente, clarifica Tiago Duarte, “o princípio da confiança é um subprincípio contido no princípio da segurança jurídica”, que, por sua vez, “se retira do princípio do Estado de direito democrático, expresso no artigo 2.º da Constituição”. E explicando o raciocínio que conduz de um princípio ao outro, afirma: “Se Portugal é um Estado de direito, em que o direito regula a vida das pessoas e em que só o direito pode transmitir segurança, as pessoas só podem sentir-se em segurança se confiarem que o Estado é um Estado de leis. É por isso que o princípio da confiança só se refere a leis.”

Por outro lado, este resulta de consensos que vão sendo estabelecidos a cada momento nas sociedades. “Temos a expectativa e a convicção de que o legislador, os órgãos de soberania se comportam connosco de uma forma razoável, exercem os poderes dentro de uma razoabilidade”, lembra Pinto Ribeiro.

Explica que o consenso sobre o que é a cada momento essa razoabilidade se constrói “de acordo com a evolução da consciência social”, precisando: “Todas as discussões na sociedade, seja sobre o uso da burqa, seja outras, estabelecem evoluções da ética da sociedade a evolução da ideia de bem e de mal”. Daí que haja “uma consciência social que evolui, mas há também uma consciência jurídica”.

O TC é o órgão a que cabe aferir, caso a caso, através de pareceres, o que cabe dentro deste conceito ou o que deve ser considerado inconstitucional, aponta Pinto Ribeiro, que diz: “O TC não diz o que é, tem legitimidade apenas para dizer o que não é, funciona como um tribunal de cassação que anula sentenças”, em países como os Estados Unidos.

O papel deste tribunal e dos seus 13 juízes-conselheiros - dez dos quais escolhidos pelo poder político e três cooptados pelos pares - tem sido questionado por muitos sectores. Uma crítica assumida por Júdice: “Há várias formas de pôr em causa a confiança, não é só o que 13 senhores do TC acham que é. Todos os juízes do TC são funcionários públicos e tiram vantagens de serem juízes do TC. Todos somos nós e a nossa circunstância.”

Definido pela negativa, o princípio da confiança no Estado materializa-se através dos preceitos que orientam a acção do Estado. “Todos os agentes de Estado, incluindo o legislador devem actuar de acordo com esses princípios”, sublinha Pinto Ribeiro. É nesse sentido, prossegue este jurista, que o artigo 266.º da Constituição determina que “os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé”.

Garantismo e imobilismo

O garantismo sobre a confiança no Estado não pode ser levado ao extremo, defende Tiago Duarte, para quem “o reverso da confiança é o imobilismo”. Também Júdice afirma que é preciso que “se pense onde acaba a confiança e começa a mudança do mundo”, já que “se não fizermos isso, um dia olhamos e o contrato social não está lá”. Daí que este jurista sublinhe que a aplicação do princípio da confiança “tem de ponderar o contexto”, concluindo: “Hoje, os direitos adquiridos estão a ser postos em causa por problemas que não dependem do Governo, a deslocalização da produção, o desemprego, a crise.”

Também Tiago Duarte alerta para que “o princípio da confiança não pode cristalizar o sistema” e fazer com que “um Governo condicione e limite a actuação do Governo seguinte”. Já que “sem democracia e sem mudança de maiorias, de ideologias e de opções políticas não se pode viver num Estado democrático”.

O professor de Direito lembra que, em democracia, “as leis são feitas por maiorias políticas e um excesso de segurança jurídica levaria a que uma maioria parlamentar não pudesse alterar leis da maioria anterior”. Sublinha que “a confiança é precisa, mas a revisão legislativa democraticamente legitimada também”. É esse equilíbrio que se chama princípio da confiança legítima, o qual, explica, tem de ser a cada caso balanceado com outro princípio: o do interesse público.

A título de exemplo, Tiago Duarte diz que, perante a tentativa de diminuir salários ou despedir na função pública, o padrão de actuação do TC é o de que “para abolir um direito é preciso saber se o Estado induziu as pessoas a terem essa confiança”. Ou seja, “se há vinte anos não havia cortes nos salários isso criou convicção, o Estado induziu a criar essa confiança”, mas esta foi balanceada pelo “interesse público”.

Por sua vez, Júdice sublinha que os juízes-conselheiros “argumentam que se baixassem todos os ordenados, não era inconstitucional, mas não se pode baixar a uns e não a outros” e “partem do princípio de que os salários de 2007 e de 2008 eram justos”. Um ponto de vista que este jurista considera questionável, pois “antes funcionários públicos tinham benefícios sobre o privado, o Estado pagava mais, mesmo ao mais alto nível”.

Já no caso dos despedimentos que o Governo de Passos Coelho tentou fazer passar, relata Tiago Duarte, “o TC considerou que o Estado tinha criado expectativa aos cidadãos”, uma vez que “o Governo de José Sócrates fez alteração às leis laborais flexibilizando-as, mas só para os novos contratos”, logo “as pessoas que tinham contrato ficavam imunes”.

Júdice sustenta que a alteração de contexto devia ter sido considerada pelo TC, já que “depois de 2011, os funcionários públicos ganharam menos mas não foram despedidos como os trabalhadores do privado”, sendo que estes, quando “voltam a arranjar emprego, ganham menos 20%”. E conclui: “O corte de 10% nos salários de um funcionário público pode não ser muito, comparando com o irmão dele que teve de emigrar”.

Os limites do Estado

É a aferição das circunstâncias de cada caso que levou o TC a considerar, em relação ao Orçamento do Estado para 2014, que não era inconstitucional a retirada dos complementos de reforma dos trabalhadores dos transportes, pois, neste caso, não tinha havido quebra de confiança.

A argumentação é simples. Quem se comprometeu a pagar os complementos de reforma não foi o Estado e tal não está inscrito numa lei. Mais, o TC lembra, no acórdão 413/2014, que as empresas públicas se regem “pelo direito privado e desenvolvem a sua actividade nas mesmas condições e termos aplicáveis a qualquer empresa privada”. E acrescenta que “não existe qualquer evidência de que tenha sido o Estado-administrador, enquanto titular da função accionista, a induzir as empresas visadas, a formalizar através da contratação colectiva os pagamentos de complemento de pensão”.

Vitor Ferreira, advogado de filiados no Sindicato dos Trabalhadores de Transportes Rodoviários e Urbanos de Portugal e do Sindicato dos Trabalhadores do Metro, em declarações ao PÚBLICO, assume que a decisão do TC neste caso “foi a frustração dos trabalhadores que estão no activo em relação ao futuro e é a quebra de um compromisso com os reformados”. E denuncia:“ Há pessoas que foram incentivadas à reforma, porque teriam complemento que preencheria as penalizações pelo período de antecipação, e agora perderam 40%, 50% ou 60%.” A partir do momento em o “TC recusou a declaração de inconstitucionalidade, os outros tribunais a que os trabalhadores têm recorrido” limitam-se a “reproduzir os argumentos do TC”, afirma.

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Manifestação de trabalhadores em Março de 2014 Enric Vives-Rubio