Análise

Samba de um país encurralado

A 13 de Março, os brasileiros regressam às ruas de 154 cidades para mais uma sessão de catarse. Se há um ano mais de um milhão de pessoas aderiram aos protestos, no domingo da próxima semana os mentores da manifestação esperam 20 milhões. Quem passar pelo país por estes dias percebe a razão de tanta insatisfação. O Brasil olha para o duro presente e é incapaz de encontrar uma chave para o futuro. Há dois anos que as notícias da economia pioram a cada anúncio das autoridades. O pântano moral da corrupção em torno do gigante estatal Petrobras alastra como uma mancha de óleo e acercou-se do ex-Presidente Lula da Silva. Os brasileiros sentem que a democracia conquistada a ferros há apenas 30 anos está prisioneira de um sistema político que não só não consegue dar resposta aos seus problemas como até os agrava.  

“No Brasil de hoje, basta abrir um jornal, uma janela, uma geladeira ou qualquer fresta para dar de cara com a crise. A Lava Jato exibe o pus no fim do túnel. A recessão congestiona a trilha rumo ao olho da rua. E a inflação faz sobrar mês no fim do salário”, escrevia na semana passada Josias de Souza, no seu blogue no jornal Folha de São Paulo. Para um país que há apenas meia dúzia de anos era uma estrela maior entre os emergentes, o drama colectivo é difícil de gerir. “É como se o país estivesse na UTI [cuidados intensivo], mas anestesiado”, escreveu ainda Josias de Souza. Muitos, os mais activistas, derramam na imprensa, nas redes sociais ou nas ruas as suas angústias e a sua ira contra o PT, Lula ou a Presidente Dilma Rousseff. Outros, e são muitos, consideram que o regresso dos militares a Brasília é a única forma de colar os cacos de um país atónito, dividido e descrente. A democracia, Tancredo Neves ou Ulisses Guimarães não passam hoje de fantasmas de uma era de esperança. O Brasil continua a rir, mas parou de sonhar.

Quem aterrasse em São Paulo ou em Belo Horizonte vindo de Marte sem saber o que aconteceu depois de 2012 ou 2013 tenderia a acreditar que o problema está na economia. E está, em boa medida. Depois do surto espectacular de crescimento na era de Lula da Silva, que promoveu uma brutal transformação social do país (deixou de haver fome pelos critérios da ONU e mais de 40 milhões de brasileiros saíram da pobreza), a economia começou a abrandar depois de 2010. O milagre das exportações de matérias-primas estava a acabar. Se em Fevereiro de 2011 uma tonelada de minério de ferro ainda se vendia por 187 dólares, em Julho do ano passado tinha caído para 47. Durante os anos de euforia, o Brasil navegou à boleia do milagre chinês e, numa atitude idêntica à de Portugal na era do euro, "apostou a cave", como no póquer, no consumo e descurou os outros sectores da economia, com destaque para a indústria, a maior da América Latina. Com a queda dos preços, o Brasil ficou refém dessa opção.

Os números são aflitivos. A inflação, o maior pesadelo dos brasileiros, passou a barreira dos 10%. O défice público roçou a barreira dos 8,5% do produto. A dívida subiu para 65% – imenso para uma economia que não está ancorada a uma moeda forte como o euro. O desemprego aumentou 40% num ano e já afecta mais de nove milhões de pessoas. Em 2015, a economia recuou 3,8% e este ano as perspectivas não são melhores. Este caderno de encargos seria só por si uma dor de cabeça para um governo forte e estável. No Brasil, esse governo não existe. “A Presidente, Dilma Rousseff, não terá força suficiente para conseguir a aprovação das medidas necessárias para colocar a economia de volta nos trilhos”, dizia há dias Armínio Fraga, ex-ministro das Finanças. Essas medidas, incluídas no Orçamento deste ano, implicam duros aumentos de impostos, cortes de despesas do Estado impopulares e reduções nas transferências sociais difíceis de engolir pelo PT – embora os projectos emblemáticos como o Minha Casa Minha Vida ou o Brasil sem Miséria se mantenham.  

É neste ponto que o anacrónico, oligárquico e corrupto sistema político se cruza com a crise. O sistema eleitoral esvazia os partidos e confere especial poder aos eleitos, que incluem figuras pitorescas como o palhaço Tiririca ou celebridades do futebol como Romário. Por isso, a Câmara Federal é uma algazarra na qual os interesses particulares se sobrepõem ao interesse do país. Com 28 partidos representados, há deputados para todos os gostos, desde os gestores de redes de influência ao “baixo clero”, dos representantes de partidos organizados como o PT aos “partidos nanicos” sem programa nem propósito. Nesta algazarra, é difícil fazer maiorias. O PT foi conseguindo governar aliando-se ao PMDB, o mais “fisiológico” (volúvel aos interesses privados), e agarrando-se a esquemas de compras de votos que deram origem ao "Mensalão" e ao Lava Jato. Agora que o Governo está frágil, Dilma anda à deriva. Não tem base de apoio para fazer mudanças, até porque o PMDB espreita a sua derrocada e o PT dá-se mal com políticas de austeridade.

Para lá de ter de se empenhar na aprovação de políticas que evitem o descalabro das contas públicas e que garantam o financiamento externo (a dívida do Brasil foi considerada "lixo" este ano pelas principais agências de rating), Dilma Rousseff tem de lutar para que o seu processo de destituição (impeachment) prossiga no Congresso. O pretexto para esse processo é o incumprimento de normas legais de contabilidade pública. O cérebro da acção é o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, que, como o presidente do Senado, Renan Calheiros, e dezenas de deputados e ex-governadores está indiciado por corrupção no Lava Jato. As manobras de Cunha para garantir o linchamento político de Dilma foram torpedeadas pelo Supremo Tribunal Federal e hoje poucos acreditam que a destituição avance. Dilma, que nas sondagens é recusada por 67% dos brasileiros, poderá em breve dedicar-se em exclusivo aos problemas do país, como prometeu esta semana.

Até agora, nada a associa ao esquema de corrupção na Petrobras, que desviou para pagamentos ilícitos uns 3500 milhões de euros nos últimos anos. Mas não está livre de perigo. E mesmo que se livre, ela é a cabeça de um partido suspeito de ser a cabeça de um polvo. Lula, sem dúvida a mais fascinante e decisiva figura da política brasileira desde Getúlio Vargas, continua a dizer-se “a viva alma mais honesta do país”, mas as suspeitas da Justiça sobre a troca de favores com a construtora Odebrecht continuam a aumentar. E nesta sexta-feira o ex-Presidente foi detido pela polícia para interrogatório. João Vaccari Neto, secretário das Finanças do PT, está preso; Delcídio do Amaral, senador do PT, também; João Santana, o poderoso “marqueteiro” do PT, foi detido no dia 23 de Fevereiro por suspeitas de ter recebido ilegalmente três milhões de dólares da mesma construtora. Uma sondagem recente indicava que só 12% dos brasileiros se dizem simpatizantes do partido: o mesmo valor de 1988, quando Lula era o “sapo barbudo”, um projecto de líder político limitado ao proletariado paulista. E neste acentuar de denúncias, de suspeitas e de prisões, a base de legitimidade de Dilma e do PT vai-se perdendo.

Com o vírus do Zika ou o desastre ambiental em Mariana a adensar o cenário de um destino incerto, o Brasil olha para os próximos Jogos Olímpicos como uma história de um tempo que já passou. Os dias do crescimento, os dias em que o Brasil era a estrela planetária que brilhava em Davos e nomeava presidentes da Organização Mundial do Comércio ou da FAO, acabaram. Os tempos em que o país acreditava estar a cumprir a profecia de Stefan Zweig sobre o futuro fazem parte do passado. Começar de novo é uma tarefa hercúlea, para a qual falta moral pública, espírito de compromisso, instituições, líderes credíveis, esperança, resistência e paciência.

Nem tudo está perdido. O Brasil é um país surpreendente, com vanguardas intelectuais, empresas de ponta, imprensa livre (embora radicalizada), uma sociedade cosmopolita e uma justiça determinada. Não é caso para acreditar no regresso do golpismo militar, como em 1964. Mas é caso para admitir uma fase de adaptação longa e dolorosa, na qual muito do que o país ganhou desde a estabilização de Fernando Henrique Cardoso, em 1994, pode ser irremediavelmente perdido.

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Reuters
Lula da Silva foi detido para interrogatório DOUGLAS MAGNO/AFP