O que a alfazema e o sabão têm a ver com isto?

São 55 segundos a documentar os movimentos de muita gente, sobretudo mulheres, a sair de um edifício imponente, num plano fixo interrompido pelas carroças a passar na rua de Santa Catarina, no Porto. Esta é a brevíssima descrição do primeiro filme português, assinado por Aurélio Paz dos Reis e que marcou a estreia do Kinematographo Portuguez. Data de 1896 e não é uma ideia original, mas antes uma réplica do primeiro filme da história do cinema, rodado um ano antes pelos irmãos Lumière. Os inventores do cinema chamaram-lhe La sortie de l’Usine à Lyon, sendo mais importante referir o local, a cidade francesa de Lyon, do que nomear as instalações. Aurélio Paz dos Reis não chamou o Porto ao seu título. Chamou-lhe: A saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança.

O nome da fábrica, em 1896 já era importante, e a confiança não era só um sentimento. Era, também, uma marca, a que invocava a “maior camisaria da Península”, que chegou a empregar mais de mil operárias. Ainda as ciências sociais não tinham teorizado sobre o segredo, a incerteza, a fidelidade ou o risco (entre outras noções), e já os empresários nacionais sabiam os valores que queriam ver associados à sua marca e à sua existência. E se Confiança do Porto se perdeu nas brumas da memória, outra empresa há que, fundada dois anos antes, e depois de ter atravessado três seculos, tantos regimes, guerras, crises e revoluções, continua a levar o nome Confiança à prateleira dos supermercados, e às estantes de lojas para segmentos mais premium.

Hoje a Perfumaria e Saboaria Confiança, fundada em Braga em 1894, está nas mãos da que foi a sua principal concorrente, a Ach Brito, e que havia sido criada no Porto, sete anos antes. Aquiles Brito, administrador da quarta geração da empresa que também detém a marca Claus Porto, nunca teve dúvidas, e quis rapidamente mostrar que eram infundados os receios daqueles que temiam que a Ach Brito quisesse tomar os activos industriais e fazer desaparecer a marca que durante tantas décadas com ela discutia quotas de mercado.

“Fazia sentido manter a marca. Sabemos o valor do seu património e da sua história. São marcas complementares, todas têm o seu caminho”, diz Aquiles Brito. O segredo, acrescenta, é manter a qualidade dos produtos, para que as pessoas continuem a identificar-se com ele. O produto ícone continua a ser o sabonete “Alfazema de Portugal”, e o produto estrela, o que lhe traz mais vendas, é o Sabão Offenbach, cor rosa para as vendas a norte e azul para as vendas a sul. “Não tenho qualquer explicação do porquê, o mercado é mesmo assim”, acrescenta Aquiles Brito, garantindo que se trata apenas de uma questão de pigmento e que não há qualquer outra alteração na composição do produto.

Nuno Coelho, autor de uma tese de doutoramento em arte contemporânea sobre O Design da Embalagem Industrial em Portugal no século XX – do Funcional ao Simbólico encontrou no caso da Saboaria e Perfumaria Confiança um exemplar paradigmático de resistência e resiliência. Designer, apaixonado pela tipografia e pela arqueologia industrial, Nuno Coelho mergulhou no espólio e analisou os rótulos (quase um milhar deles), encontrou uma narrativa que permite de alguma forma contar a história da cidade - e do país. “A Confiança dedicou uma atenção particular à embalagem e rotulagem dos seus produtos, sendo talvez o único exemplo de uma unidade industrial do ramo com a sua própria oficina tipográfica, e que com ela acrescentou capítulos à nossa memória histórica colectiva”, afirma o investigador.

E, se durante o século XX fez sentido invocar a “confiança” para um negócio ou uma empresa - e ainda hoje não haverá um concelho no país que não tenha um talho, uma drogaria, uma óptica, ou uma farmácia que não inscreva esse nome no cabeçalho do recibo –, hoje em dia “nem por isso”, diz Rui Silva, chief creative officer da BBDO. “A confiança não saiu, nem pode sair, da estrutura de valores de uma empresa, de uma marca. Mas usa-se muito menos na comunicação, onde o escrutínio é muito mais apertado”, refere Rui Silva, que acumula a direcção criativa com a de chairman da subsidiária portuguesa da multinacional de publicidade.

Os paradigmas de comunicação alteraram-se e passaram dos mass media (os anúncios televisivos, a publicidade nos jornais) para os private media (as redes sociais, as comunidades de interesses). “A comunicação publicitária continua a ter objectivos económicos e financeiros, mas agora é um processo orgânico”, explica o publicitário. “Antes um anunciante pagava para ser ouvido, hoje tem de ser interessante. Tem de ser o monte no meio da planície, e depois de conseguir a atenção, tem de lhe dar relevância”, acrescenta. Como? “Sendo credível, genuíno, honesto”, diz. Com a Internet, o mundo geográfico mudou. “Toda a gente tem acesso a tudo, e tem poder de agir sobre isso. A Internet é um meio de informação. E de divulgação. O escrutínio é permanente”, argumenta.

Albertino Gonçalves, que para além de gerir o departamento de sociologia da Universidade do Minho alimenta o blogue “Tendências do Imaginário”, onde aborda a mensagem publicitária, di-lo de outra forma. “Hoje em dia as empresas não apostam na confiança, nem no seu valor intrínseco, racional. A mensagem é mais sentimental, emotiva”, considera o professor, “apela mais à adesão, à fidelidade”. Ao envolvimento. “É uma noção diferente do que se fala nas redes sociais. Não é uma coisa que se escreva, que se imponha. É uma coisa que o consumidor sente”, explica Rui Silva.

Mas a confiança, essa, tem de estar lá sempre. Na linha criada nos anos 50 e que se tornou o seu ícone, a saboaria hoje detida pela Ach Brito definia-se como “uma história antiga, com aromas sempre presentes”. A história continua hoje. A cheirar a sabão e alfazema.

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