Memórias de Família

Memórias de Família

Só Felizardo foi à guerra

Felizardo Simões escrevia à família que na guerra havia homens com saias, chamavam-se escoceses

Felizardo Simões e Manuel Simões eram gémeos. Foram os dois mobilizados para a guerra com 27 anos mas, numa revista à formatura, o irmão Manuel pediu ao militar de alta patente que só um deles fosse enviado, “para que ficasse um a ser amparo da mãe”, que já tinha 71 anos, conta o seu neto, Manuel Simões Rodrigues Marques.

O militar em causa compadeceu-se do pedido, chamou o oficial que o acompanhava e disse-lhe para tomar nota do nome do irmão que fazia o pedido, para que fosse só ele a ir para a guerra. Apesar de serem gémeos, Manuel quis escapar-se e deu o nome do irmão. “Só um foi um para a guerra, mas foi o Felizardo”, lembra o neto que recorda que Manuel Simões sempre foi “o mais descarado dos irmãos”.

Já casado e com dois filhos, Felizardo embarcou então para França, no dia 26 de Maio de 1917, com 28 anos de idade, na 1.ª Companhia do Batalhão de Sapadores de Caminhos de Ferro, integrado no Corpo Expedicionário Português, e por lá andou quase dois anos. Em família diz-se que morreu em 1934 com 47 anos, quinze anos antes de o neto ter nascido. “A família afirmava que ele tinha morrido novo, resultado do gás mostarda que tinha inalado na guerra.” Depois de regressar da ainda teve mais cinco filhos.

Nasceram em Albergaria dos Doze, no concelho de Pombal, tendo o irmão gémeo que ficou, Manuel Simões, mais tarde ido viver para as Caldas da Rainha. “Houve muita troca de correspondência, que a família guardou ao longo destes quase 100 anos” e Manuel Simões Rodrigues Marques destaca um excerto: a 30 de Setembro de 1917 escrevia à esposa um postal, com a fotografia de dois soldados, onde dizia: “Minha querida, saúde, bem assim Amélia e mãe, que eu bem. Envio-te este postal que é para vocês verem que na guerra também andam homens com saias e são os melhores guerreiros. Chama-se escocês e o outro é inglês”

“É histórico que tudo correu mal ao Corpo Expedicionário Português e o avô Felizardo não fugiu à regra, com a suas insubordinações, registadas na sua Caderneta Militar”, continua a relatar o seu neto. Mas o Estado Português reconheceu que “O Batalhão de Sapadores de Caminhos de Ferro foi a Unidade Portuguesa que, com maior persistência e assiduidade, mais cooperou na zona de guerra, onde prestou notáveis e assinalados serviços, em circunstâncias por vezes difíceis e arriscadas e muitas vezes debaixo de fogo da artilharia inimiga”.

A povoação de onde era Felizardo, Albergaria, no concelho de Pombal, é de solo pobre, a agricultura pouco cultivo dava. Mas com a construção do caminho-de-ferro começaram novos dias. Os dois irmãos foram ambos foram empregados da CP. Mas só Felizardo foi à guerra.
 

  • José António Rebelo Silva, prior da freguesia de Colares desde 2006, ofereceu-nos uma missa que nos comoveu e, espantosamente, consolou.

  • Os dias contigo são os bocadinhos de manhã, tarde e noite que são avaramente permitidos aos mais felizes.

  • O que contam os descendentes de quem viveu a guerra de forma anónima? Cem anos depois do início da I Guerra Mundial, já sem a geração do trauma, a memória reconstrói-se e tenta-se a biografia portuguesa do conflito europeu.Durante três dias, os testemunhos chegaram ao Parlamento na iniciativa Os Dias da Memória.

  • Ao contrário da generalidade dos militares portugueses evocados nestas páginas, o contra-almirante Jaime Daniel Leotte do Rego (1867-1923) não precisa de ser resgatado do esquecimento

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