“24 de Março de 1917: É um sábado, um dia triste apesar da extrema claridade do céu. De manhã ainda uns últimos retoques nas malas, umas visitas de fugida, combinar umas determinações e andar ligeiro, pois o tempo, como um cavalo, marcha impávido até à hora de partida. Nunca se passou um dia tão rapidamente. Uma tristeza imensa me dominava por ter que deixar os meus queridos, Deus sabe por quanto tempo e se para sempre! Minha mulher! Minha filha querida! Meus pais! Tornar-vos-ei a ver???”.
Assim escreve Raúl de Carvalho, nascido em 1888, na primeira entrada do seu pormenorizado diário, em vésperas de partir para a guerra, em França, na sua qualidade de médico analista.
A viagem até Paris demorará duas semanas. Teve uma passagem pela guerra calma, resguardado dos conflitos, primeiro na estância balnear de Paris-Plage, com outros médicos. Como ainda não havia um hospital português pouco mais podem fazer do que vacinar tropas e tratá-las de doenças venéreas, escreve a historiadora Margarida Magalhães Ramalho, que organizou as suas memórias em forma de um livro que se ficou a chamar Quando Raúl foi à guerra (edições Matéria Prima). Depois é destacado para Calais, onde a guerra, com os seus bombardeamentos, já se torna presente no seu dia-a-dia. Perto de Calais, em Ambleteuse chefia o laboratório de um hospital militar.
Os seus relatos não são sobre questões militares ou a vida nas trincheiras. “Homem meticuloso por natureza” deixa nos seus quatro organizados cadernos as suas impressões pessoais de tudo um pouco, das pequenas intrigas e desavenças entre oficiais, ao que comiam, ao preço das coisas, a sua opinião sobre as mulheres locais. Lamenta, por exemplo, as mulheres francesas que, com o marido fora na guerra, se prostituem, culpando tanto a elas como aos homens que as procuram, aconselhando antes: “há tanta mulher não casada que pode satisfazer os nossos desejos sem que a gente a faça pecar tão grandemente e sem que nós fiquemos tão mal com a nossa consciência”.
A última entrada do diário é de 8 de Outubro de 1917: “Passei a noite a fazer o resto das malas que estavam quase todas concluídas. Grande alegria é esta de fazer as malas para partirmos para o pé dos nossos queridos; o coração parece que me não cabia no peito, caramba! Deitei-me, sempre a pensar na felicidade de ir ver os meus”.
A família desconhece se terá voltado a França depois destes primeiros sete meses de permanência na guerra (os diários são apenas deste período). De volta a Lisboa, Raúl de Carvalho vai enveredar definitivamente pela área farmacêutica e, em 1923, será o primeiro português a ter um doutoramento em Farmácia. A historiadora Margarida Magalhães Ramalho foi amiga da família de Raúl Carvalho, que vivia em Lisboa, e conheceu de perto “este velho senhor de barbicha branca que guardava e catalogava tudo o que encontrava, desde recortes de jornais a bocados de lápis ou pedaços de cordel. Tornou-se definitivamente para mim, o avô Raúl, cujas excentricidades e manias ainda hoje fazem sorrir os seus bisnetos e trinetos”, escreve no prefácio do livro.
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