Muitos anos depois de ter voltado, Aniceto José gostava de se sentar no canto da chaminé, na sua casa do monte alentejano, a beber chá e a contar histórias aos netos. Sabia muitas, e por vezes contava-nos também coisas do tempo da Grande Guerra.
De como o frio apertava nas trincheiras e os soldados comiam sopa aguada dentro dos capacetes que usavam na cabeça. E dos alemães, que o fizeram prisioneiro na batalha de La Lys e que, no fim de contas, assim lhe salvaram a vida. Era o herói da família, este avô que nunca matou ninguém porque lhe deram a tarefa de maqueiro e que a família deu como morto, mas que conseguiu regressar são e salvo da maior aventura da sua vida.
Aniceto José nasceu em 1895 na aldeia da Trindade, entre Beja e Castro Verde, no coração do Alentejo. Era ainda adolescente quando lhe morreu o pai e habituou-se desde cedo a trabalhar na lavoura e a cuidar da mãe e das cinco irmãs. Tinha 20 anos quando foi chamado a fazer a tropa e 22 quando, num dia que nós imaginamos cinzento e chuvoso, partiu do monte da Caxia, onde então vivia, para o comboio que o haveria de levar a Lisboa para embarcar para a Flandres.
A partida esteve longe de ser pacífica. Houve quem desertasse e quem simplesmente lhe desse para andar pela cidade, onde, quase de certeza, a maioria nunca tinha estado. O avô contava que muitos embarcaram à força, “por ordem do Sidónio Pais, que os vendeu a todos aos ingleses por uma libra por cabeça”. Não era homem de ligar muito à política, mas do Sidónio Pais nunca gostou.
Os recrutas de Beja integraram o Regimento de Infantaria 17 do corpo Expedicionário Português (CEP), que embarcou para França a 21 de Agosto de 1917. Ninguém sabia muito bem o que iria encontrar, mas era certo que não seria bom e o avô Aniceto haveria de levar o coração na boca. Mesmo aos netos, que o consideravam um herói, reconheceu muitas vezes o medo que teve, que todos tinham, escondidos nas trincheiras à espera dos bombardeamentos alemães. Nunca matou ninguém, mas viu a morte de frente tantas vezes, que lhes perdeu a conta, porque, como maqueiro, tinha de recolher do campo de batalha os mortos e os feridos. Disso não gostava muito de falar. Preferia contar coisas sobre os alemães, que o fizeram prisioneiro a 9 de Abril de 1918, na histórica batalha de La Lys
Esteve oito meses em Wesel, junto à fronteira com a Holanda onde, nas margens do Reno, ficava o campo de prisioneiros de guerra de Friedrichsfeld. Desse tempo sobreviveu um postal, enviado à mãe, Joaquina Maria: “Minha querida mãe, muito lhe desejo a sua saúde e bem e assim como as minhas manas e meus sobrinhos e toda a nossa família que me pertence, que este seu filho goza saúde. Minha mãe, peço que me diga as novidades. Sem mais, abrace muito as minhas manas e recomende a toda a nossa vizinhança. Aniceto José”
Aprendeu a ler na tropa, mas pedia a alguém que lhe escrevesse as cartas. E foi isso que deu origem a uma grande confusão, que levaria a família a dá-lo como morto: num outro postal que chegou ao Alentejo, lia-se que ele estava “na companhia do padrinho”, que também tinha ido para a guerra. Acontece que, pouco tempo antes, chegara a notícia de que o padrinho tinha morrido, pelo que a família pensou que aquela era uma forma de os colegas contornarem a censura que se fazia à correspondência dos prisioneiros e assim lhe dizerem que ele estava morto.
Aniceto regressou a Portugal a 18 de Janeiro de 1919, poucos dias depois de fazer 24 anos. Pediu a um compadre que fosse à frente, dar a notícia à mãe e às irmãs e assim evitar comoções, mas entre nós, os netos, imaginávamo-lo a chegar ao monte em apoteose, com as manas ainda de luto, a abraçá-lo e a desmaiarem de emoção.
Voltou à sua vida de lavrador, casou com Bárbara da Lança Palma e tiveram seis filhos, 10 netos, 13 bisnetos e quatro trinetos. Morreu tranquilamente, durante o sono, aos 88 anos.
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