Entrevista

“O atleta mostra que está limpo por mostrar que não é uma máquina”

O doping é uma tentação?
Para além de uma tentação, para muitos atletas, é uma realidade. É muito fácil de se fazer. Desse ponto de vista, é uma tentação para quem não tem valores, não se respeita a si próprio e não respeita os outros. Com a globalização, essas substâncias são de fácil acesso. Pode mandar vir para casa pela Internet, os produtos passam pela alfândega e não há investigação.

É um sinal de que os atletas não têm confiança nas suas capacidades? Querem ir pelo caminho mais fácil?
Na alta competição são detectadas desde muito cedo características únicas para desenvolver uma actividade ou uma disciplina. Depois, vem a parte do trabalho, e isto é tudo feito passo a passo. Quando cada atleta chega ao seu limite e pensa que já não tem mais para dar, aí é que entram as questões do doping. Muitos acham que, para chegar mais além, para serem o medalhado, o vencedor, devem recorrer ao doping.

Os atletas que recorrem ao doping já são atletas muito bons, têm características físicas excelentes. Só que o que eles tomam, e o que eles melhoram, nem que seja apenas dois por cento, pode fazer a diferença. Onde está o nosso limite? Até onde podemos ir? Há quem continue a procurar, mesmo que seja uma progressão muito lenta. Há outros que querem dar o salto de forma mais directa e nem todos têm a paciência para trabalhar durante anos para ganhar uma medalha.

Até colocando em risco a própria saúde…
A saúde é sempre colocada em risco. Quando falei de a pessoa respeitar-se a si própria, também falo da integridade física. A pessoa acaba por tomar substâncias dopantes que, mais tarde ou mais cedo, a vão pôr em situações de perigo, em termos de doenças crónicas, ataques cardíacos, cancros que aparecem do nada, descontrolo hormonal.

Só por fazer alta competição, nós, os atletas, já vamos sofrer porque levamos o nosso corpo ao limite. Tendões, músculos… Temos uma actividade em que levamos o corpo ao limite todos os dias e, mais cedo ou mais tarde, vamos pagar por isso. Quem toma essas substâncias vai pagar de certeza. Alguns têm essa noção, mas a maioria não. Pensam que vão ser jovens para sempre, é o momento que interessa.

O Nelson alguma vez se sentiu tentado a ir por aí?
Nunca. Acho que sou uma pessoa de valores bem delineados. Tenho uma mãe, um pai, tenho família, amigos, treinador, que não posso desiludir dessa forma. Não posso quebrar a confiança. O desporto é dar o meu melhor. Se perder, perdi. Se ganhar, ganhei. E as pessoas que me entendem e acompanham sabem o que é estar numa grande competição a lutar por medalhas. Quando perco, são as primeiras a dizer: Acontece, não és de ferro. Quando ganho, dizem: Boa, correu tudo na perfeição.

Para mim, é muito importante estar de consciência tranquila, saber que posso ter uma vida sem esquemas. Saber que vou conseguir dormir quando me aparece um controlador. Sei que vou conseguir treinar. Acredito que quem recorre a substâncias dopantes também viva em stress, sempre a pensar no que vai acontecer e no que pode correr mal. Devem viver num clima de instabilidade emocional. E a estabilidade é muito importante para chegar longe.

Desconfiam uns dos outros durante a competição?
Não. Competição é competição, ali é a doer, não penso nisso. Estou focado em superar-me e aos meus adversários para levar a medalha de ouro. Há por vezes resultados que levantam algum desconforto, mas temos de acreditar e confiar no sistema, apesar de todas estas polémicas com a Federação Internacional de Atletismo (IAAF), com o seu ex-presidente, o filho, estes casos que envolvem a Rússia, o Quénia, as redes de doping que a IAAF teve conhecimento e abafou. Enquanto todos os países não assinarem uma lei internacional de antidopagem para que o desporto seja cada vez mais limpo, isto vai continuar a acontecer. Não é só a IAAF a culpada, mas também os governos que protegem os seus atletas para ganhar medalhas. Isso acaba por ser mais feio do que a própria IAAF.

O que acha que vai acontecer no caso dos atletas russos?
É uma questão passageira. Estão a aplicar um castigo, mas não vão ser retiradas medalhas e não vai ser feita justiça. Quem podia ter estado num pódio ou numa final perdeu essa oportunidade porque o momento já passou. Aplicar uma sanção para o mundo ver que foram castigados. Acredito que vão estar nos Jogos Olímpicos em peso. Não vivo com isso na minha cabeça, mas vai demorar algum tempo para acreditarmos que é feito um trabalho por trás para manter o atletismo limpo.

Então não olha para um grande feito desportivo de uma forma totalmente inocente. Desconfia sempre?
Não desconfio sempre. Eu não desconfio da alta performance física, acho que o nosso corpo é capaz de fazer coisas espectaculares. Só sei o que toda a gente sabe, não somos máquinas. Um atleta pode correr 9,59s nos 10m, mas se me disser que, há uma década, um atleta para correr abaixo dos dez segundos precisava de se encontrar na sua melhor forma e só o fazia uma, duas vezes por época, acreditava. Era uma altura em que havia menos casos de doping e menos controlo. Actualmente, correm abaixo dos dez segundos sempre. Até na preparação. Esses resultados que fazem com uma perna às costas eram resultados de excelência há uma década. O ser humano não evoluiu assim tanto. A tecnologia pode ter evoluído, mas são uns pauzinhos para a esquerda e outros para a direita.

O que muitos atletas fazem agora é ridicularizar tudo o que foi feito durante um século. Foi-se evoluindo de centésimo a centésimo e, de repente, foi tirado quase dois décimos de segundo. Às vezes acontece isso, como no salto em comprimento, como o Bob Beamon. Fez algo que na altura pode ter levantado alguma suspeita, mas depois viu-se a consistência dos resultados dele. O atleta mostra que está limpo por mostrar que não é uma máquina. Mostra que consegue fazer bons resultados não sempre quando quer, mas quando tudo se reúne para que tal aconteça, numa final, num meeting. Os atletas hoje parecem máquinas, entram em pista e toda a gente sabe que vão produzir um bom resultado, espectacular, abaixo de qualquer recorde de há duas décadas. Na elite, pensamos assim.

Quantos controlos tem por ano?
Não faço muitos controlos por ano. Tive um período, em 2008-09, em que fiz mais controlos. Em 2011, fiz o meu passaporte biológico e houve uma quebra substancial no número de controlos e até acho que é pouco. Se sei que há falhas no sistema, como é que hei-de acreditar nos outros?

Que opinião tem de Lance Armstrong, antes e depois de ter sido apanhado?
Acho que toda a gente já sabia que ele estava dopado. Eu vi o documentário e ele disse que todos estavam dopados e que ele era o melhor. O Armstrong estava dopado e toda a gente sabia. Todos ficaram chocados quando se revelou ao mundo. Tiraram-lhe os títulos, mas sabemos que os outros também estavam. Qual seria a solução para este problema? Deixá-lo ficar com os títulos, isso também seria um mau exemplo para os atletas novos. Puseram-no lá em cima, mesmo sabendo que ele estava dopado. Protegiam-no porque ele fazia a modalidade voar.

Acontece o mesmo com o Usain Bolt. Se ele alguma vez for apanhado, o atletismo perde o seu pilar principal. Da mesma forma que o Armstrong era o pilar do ciclismo, o Usain Bolt é o pilar do atletismo. Enche estádios. Os atletas estão todos dopados? Não, não estão. Mas as pessoas pagam para ver o espectáculo. O Ben Johnson chegou a vir a Portugal e eu fui ver [a 10 de Junho de 1992, no Estádio José Alvalade, no Meeting de Sto. António]. As organizações pensam desse ponto de vista, do espectáculo e do lucro.

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