Editorial

O melhor doping é a confiança

Há 26 anos não imaginava que me iriam dar a oportunidade de ser director por um dia de um jornal, cuja língua oficial, naquela altura, nem era a minha. Foi com grande honra que aceitei este desafio de dar um pouco de mim neste 26.º aniversário do PÚBLICO.

Sendo eu o triplo-saltador em que todos confiam para chegar aos próximos Jogos Olímpicos e ganhar uma medalha e, de preferência, a de ouro, a confiança é o tema desta edição. E, como desportista, falo-vos um pouco dessa confiança nos momentos-chave da minha carreira.

Sabendo que muitos certamente estarão atentos a este grande momento que são os Jogos, vou aproveitar para relatar mais ou menos através de experiências anteriores um dia de uma dessas finais.

O "dia D" para mim é um dia que tento passar da forma mais calma e descontraída possível, embora haja sempre borboletas dentro de nós. Mas, quando a hora de seguir para o estádio chega, a concentração e tensão aumentam de uma forma abrupta.

É um misto de emoções, pois é o momento pelo qual sonhamos e ao mesmo tempo o momento por que muitos certamente não gostariam de passar. Em toda a viagem até um estádio olímpico, parece que tudo nos passa pela cabeça, bons e maus momentos, mas se tivermos feito tudo o que estiver ao nosso alcance, para estarmos felizes e satisfeitos com aquilo que queremos e somos, então será com essa convicção que entraremos naquele estádio, onde todos os nossos sonhos e medos são postos à prova. Porque falo nisso? Pois até um simples saltador de triplo salto quando chega o seu dia D é também o resultado não só de músculos, tendões, horas de treinos, mas, sobretudo, daquilo que traz no coração. E a tudo isso podemos chamar "a nossa confiança" – o melhor doping é a confiança.

Chegando ao estádio, temos um período de 15 minutos de activação dos músculos com o fisioterapeuta, ligaduras e afins. Depois, começamos o nosso aquecimento, que dura aproximadamente 40 a 50 minutos, até sermos convocados para a primeira câmara de chamada. A câmara de chamada é uma sala minúscula, onde obrigatoriamente todos os atletas ficam sentados junto uns aos outros, cruzando olhares. Alguns tentando intimidar imediatamente alguns dos seus adversários. Já viram filmes de gladiadores? Vejam como muitos filmes retratam esses momentos. Antes de os gladiadores entrarem na arena, alguns já estão em pânico e, desculpem a expressão, completamente “borrados”. Até esse momento, o aquecimento é progressivo, porque a partir do momento em que entramos na câmara de chamada n.º1, onde somos revistados e identificados, já não podemos sair. Após 20 minutos seguimos para a câmara n.º2, onde o nosso equipamento é analisado para ver se estamos a cumprir as regras oficiais, relativamente aos equipamentos de cada equipa. Por fim, e finalmente, entramos no estádio para concluirmos o nosso aquecimento com o acerto das corridas de balanço. Este é um momento crucial, pois são os últimos retoques antes do início da prova. E é aqui que os nossos níveis de confiança têm de estar elevados.

Sendo este um ano tão importante por ser um ano de Jogos Olímpicos, a confiança é construída nos milhares de saltos que desenvolvemos, nas toneladas de pesos que levantamos e nas milhares de corridas de balanço que esboçamos, para que tudo seja perfeito e sem falhas no dia H.

Assim que começa a competição e nos alinhamos no corredor de saltos para o nosso primeiro ensaio, a única coisa em que pensamos, falando por mim, é tentar sentir uma vaga de energia positiva e um impulso para começar a correr o mais rapidamente possível até à tábua de chamada, para poder saltar de uma forma tão leve que os três saltos quase pareçam um só. Atenção: serão percorridos 41 metros e 30 centímetros em velocidade máxima até à tábua. Qualquer hesitação ou movimento fora do normal e os mesmos 41 metros e 30 centímetros poderão sofrer uma pequena alteração: 2 milímetros a mais da corrida de balanço podem significar que o salto me é anulado, porque pisei a plasticina. Isso significa uma perda de confiança para mim, porque terei de acertar a corrida de balanço e perante o meu erro alguns dos meus adversários provavelmente farão bons saltos.

Um concurso de triplo salto não é somente quem salta mais longe, também quem o faz em primeiro, porque isso influencia o lado psicológico dos oponentes. Após todos terem feito o seu primeiro salto, começa a essência deste género de competições, em que muitos começam a tentar intimidar os seus adversários, de todas as formas possíveis. Pessoalmente, prefiro ficar no meu canto e focar-me em aspectos técnicos, como também me preocupo em me acalmar, como forma de poupar energia. Durante os vários ensaios aproveitamos para falar com o nosso treinador para acertar um ou dois aspectos técnicos. O professor Ganço tem um papel preponderante em manter-me focado e sereno. Como boa dupla que somos e sendo um dos segredos do nosso sucesso, naquele momento somos um só em perfeita sintonia. Costumo dizer que eu desenho e o meu treinador pinta a tela, porque, enquanto eu salto, ele passa a ser os meus olhos: quando trocamos ideias e cruzamos aquilo que senti com o que ele viu, desenhamos saltos como os de 17,74m.

Após três ensaios são eliminados quatro atletas, restando apenas oito que têm direito a mais três ensaios finais. A esta fase da competição podemos intitular de finalíssima, pois é a última filtragem dos melhores atletas que se mantêm em competição a lutar pelas medalhas. Acreditem em mim: qualquer um destes a qualquer momento pode dar a volta ao jogo a seu favor. O facto de qualquer dos oito atletas ser capaz de arrecadar uma das medalhas torna esta competição linda, pois não devemos subestimar ninguém. Ironicamente até eu já fui uns dos que foram subestimados e inverti o jogo, tornando-me campeão do mundo. Por isso nunca subestimem ninguém.

O que vai na cabeça de um atleta quando vai na frente nos últimos ensaios ou vai atrás é incrível. Felizmente, e infelizmente, já estive em todas as situações e é óbvio que prefiro estar na frente e sentir o coração bater a mil, tal como já me encontrei em situações desfavoráveis que também põem o nosso coração a mil.

Mas, mais do que o coração, a parte psicológica é fundamental. Poucos atletas têm a capacidade de inverter o jogo a seu favor nos momentos cruciais de uma competição tão importante, como uns Jogos Olímpicos ou Mundiais. Quando isso acontece, este tipo de finais torna-se espectacular. Coração e mente a mil… lembrem-se que têm de se manter concentrados, porque ainda têm de correr 41 metros e 30 centímetros, independentemente de estarmos na frente ou não da competição. Porquê esta rigidez dos 41,30m? Porque se começarmos a retirar centímetros à nossa corrida, quer dizer que estamos ligeiramente mais lentos. Por outro lado, nem sempre ganhar centímetros na corrida significa que estamos mais rápidos. Como é normal, todos os atletas têm uma passada, em média, confortável e após muitos estudos o próprio aprende a perceber se está tudo dentro dos parâmetros normais e equilibrados, logo 41,30m significa que estou a correr o mais rápido que posso para fazer “o salto”. Por vezes, não somos nós que estamos diferentes, poderá ser o tipo de solo mais rijo ou mais macio que faz com que altere o tamanho da nossa corrida. Tantos detalhes leva qualquer um a pensar: estes indivíduos ou são perfeitas máquinas, ou então têm muita sorte para tudo isto bater certo. Na realidade, lembram-se que disse que fazemos isto milhares de vezes nos treinos para que não se altere muito daquilo que treinamos. A única coisa em que temos de ter sorte é que o vento não estrague tudo isto. Se soprar um pouco pelas costas, pode ajudar-nos, mas se for de mais prejudica e, como todos sabemos, o vento muda de sentido muitas vezes, e a sua força altera-se constantemente...

Gostaria que muitos experimentassem o triplo salto, para que pudessem entender um pouco a arte de uma prova de atletismo e a sua dureza implacável, afastando quem hesita por um segundo ou quem falha, porque não se preparou da melhor forma. Lesões, problemas pessoais, entre outros factores, podem afectar-nos no resultado final. Não somos máquinas, mas agimos como tal.

Confiem que vou treinar todos estes detalhes e mais alguns para acertar naquele dia.

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Nelson Évora nos Mundiais de Pequim, em 2015 Phil Noble/Reuters