Análise

Da confiança dos mercados à desconfiança dos cidadãos

1.

Em Abril de 2013, o The Guardian escrevia em letras grandes que a confiança dos europeus na Europa tinha atingido o seu valor mais baixo de sempre. O jornal britânico referia-se a um inquérito de opinião de Bruxelas, do qual foram destacados os seis maiores países da União, devidamente analisados por Ignacio Torreblanca, investigador do European Council on Foreign Relations e habitual colunista do El País. O académico espanhol escrevia que o declínio vertiginoso da confiança na União nestes seis países se tinha transformado num pesadelo para os governos europeus, a sul como a norte, revelando uma profunda crise de legitimidade política e democrática. “O estrago é tão profundo que não interessa se vem de um credor ou de um devedor, de um futuro membro do euro ou do Reino Unido: todos estão pior”, escrevia o académico espanhol. “As pessoas pensam que a sua democracia está a ser subvertida pela forma como a crise do euro está a ser conduzida”. O que é notável é que, quase três anos depois, este alerta expresso em números não teve quaisquer consequências. Pelo contrário, o desalinhamento entre a partilha dos poderes orçamentais e económicos (partilha é apenas uma forma elegante de dizer imposição) ao nível europeu e as preferências dos cidadãos nacionais não parou de aumentar. A desconfiança permaneceu. As divisões agravaram-se. A paisagem política mudou acentuadamente, penalizando os partidos centrais e alimentando os movimentos anti-sistema. A Europa fechou-se sobre si própria enquanto o mundo mudava lá fora a grande velocidade. Quando deu por ele, tinha outra crise à porta, ainda mais profunda, porque toca nos seus valores essenciais. As enormes brechas abertas pela crise do euro deixaram passar facilmente as profundas divisões reveladas pela crise dos refugiados, que se traduz hoje numa guerra de todos contra todos, num concurso para ver quem consegue apresentar medidas mais dissuasoras, no regresso das fronteiras e dos muros, ameaçando tornar-se numa crise humanitária de proporções gigantescas que “a Europa decidiu auto-infligir-se”.

2.

Depois de seis anos de crise, a confiança começa a ser um bem em vias de extinção, ameaçando a partilha de soberania que está na génese da integração. Jacques Delors chamava-lhe “espírito de família”, mas era noutro tempo, quando a Europa era ainda ocidental e quando a “igualdade entre os Estados”, inscrita nos tratados, obrigava a encontrar consensos. Os europeus acreditavam, e tinham razões para isso, que a Europa lhes era útil porque lhes garantia a prosperidade e a paz e permitia preservar um “modelo social europeu” de longe o mais generoso do mundo. Viram-na como uma protecção, quando a globalização começou a soprar mais forte. A União não precisava de qualquer outra forma de legitimação. Depois tudo começou a mudar. O fim da ordem de Ialta permitiu alargar a União Europeia à dimensão do continente, correspondendo ao “interesse vital” da Alemanha unificada, que “queria ver-se rodeada de Ocidente por todos os lados”, na expressão feliz do historiador Timothy Garton Ash. Alargar a Europa era, de resto, um “dever histórico” para com aqueles que a II Guerra deixara do lado errado da História, e um objectivo estratégico para a Europa, de forma a expandir a democracia e a estabilidade a todo o continente. A Alemanha já tinha sacrificado o seu mais poderoso símbolo nacional, o marco, no altar da integração europeia.

3.

Tudo voltou a mudar com a crise financeira de 2008, que se transformou rapidamente numa Grande Recessão. Foi nessa altura que Berlim viu na crise da dívida soberana a oportunidade para fazer do euro a verdadeira moeda alemã. Foram tempos de vendaval político, de sofrimento económico e social, de crescente desconfiança, que deixaram marcas profundas e que mudaram as regras do jogo da própria União. A confiança foi o primeiro e mais visível dano colateral. Esgotou-se nas profundas divisões entre o Norte rico e o Sul indisciplinado e “preguiçoso”, transformadas em preconceitos “morais” e “culturais”, e a divisão entre credores e devedores passou a dominar as políticas da UE. A crise dos refugiados aumentou ainda mais as divisões e as desconfianças, opondo todos contra todos, numa lógica do salve-se quem puder, sem rumo e sem sentido, que hoje ameaça a própria ideia de comunidade. Nunca a Europa foi tão mal vista pelos europeus, nunca a esperança desceu tão baixo e a confiança pesou tão pouco. Com um problema adicional, que é a descrença na própria democracia. As duas crises influenciam-se e condicionam-se.

4.

Mas vamos a alguns números. No Eurobarómetro divulgado na Primavera de 2015 pela Comissão, verifica-se uma ligeira melhoria no nível de confiança dos europeus na Europa, mesmo que a média esconda diferenças relevantes. Em 2013, este valor tinha atingido o nível mais baixo de sempre (34%), subindo agora para os 40%. A razão tem a ver com os primeiros sinais de retoma económica e a queda do desemprego. O mesmo estudo põe em evidência também percepções radicalmente diferentes sobre o estado da economia: 86% dos alemães consideram que a situação económica é boa; em Portugal, apenas 10% têm a mesma opinião, para 89% que consideram que é má ou muito má. Do mesmo modo, a simpatia pelo euro, que vinha a cair desde 2007 até 2013 (63 para 51%), começou a subir ligeiramente no ano passado: 57% dos europeus pensam que continua a ser uma vantagem, para 36% com uma opinião negativa. É esta aparente contradição que explica o facto de os gregos votarem em Alexis Tsipras contra a austeridade sem lhe dar a oportunidade de sair do euro. É também interessante verificar o que os europeus mais valorizam na Europa: a livre circulação das pessoas e as facilidades de Schengen (57%), a paz na Europa (55%) e o euro, em terceiro lugar, com 23%. Quanto às ameaças, a imigração é a primeira preocupação de 20 países europeus, seguida de uma acentuada subida do terrorismo (sem contar ainda com Paris). A situação económica e o desemprego vêm a seguir, relegando para o fim as alterações climáticas. Portugal é uma das raras excepções, mantendo o desemprego e a situação económica na frente. Estas percepções mantêm-se no Eurobarómetro de Novembro de 2015, mas a confiança na Europa a regressar ao seu curso descendente.

5.

Falta o outro lado da moeda, que dispensa os estudos de opinião porque se revela abertamente em todas as eleições: o declínio da confiança dos europeus na própria democracia. Primeiro, foram algumas das democracias do Norte que viram nascer e crescer partidos anti-sistema e anti-Europa de forte natureza xenófoba, ao ponto de condicionarem as políticas dos respectivos governos. Depois, foram as eleições nos países que sofreram, de uma maneira ou de outra, processos de resgate. O padrão é semelhante, quando olhamos para Portugal, Espanha e Irlanda. Nesta última, que foi às urnas na semana passada, a queda de popularidade do Governo, retirando-lhe a maioria que mantinha com os trabalhistas, não se traduziu em ganhos para o outro partido do regime. Houve uma dispersão, que já vimos em Espanha e em Portugal, e que é o reflexo da falta de confiança dos eleitores nos partidos tradicionais, estejam eles no Governo ou na oposição. É uma mudança que não resulta apenas da situação económica. Basta pensar que a economia irlandesa cresceu 7% em 2015 (mais do que a China), para verificar que isso já não chega para recompensar o Governo. “Os votos dispersam-se pelos partidos radicais, como os Verdes, o Sinn Fein ou a Aliança contra a Austeridade”, diz à AFP David Farrell, do University College de Dublin. “Há uma cólera contra o sistema político e uma grande vontade de punir os partidos tradicionais pelas suas políticas económicas”, diz o académico de Dublin. Os governos europeus e as suas instituições poderiam ler nestes resultados um alerta. Não é assim. A leitura dos resultados apenas parece levar em conta o ponto de vista dos mercados, ignorando as escolhas dos eleitores: enquanto Dublin procura uma solução de governo, a frase que mais se ouve é que a “instabilidade irlandesa está a afectar a confiança dos mercados”. O mesmo se diz para Espanha, quanto ao crescimento económico, ou para Portugal, com a “instabilidade” da coligação improvável mas maioritária que nos governa.

A percepção da opinião pública é que a confiança dos mercados passou a ser mais importante do que a confiança dos cidadãos. As suas escolhas não se traduzem em alternativas, a política dos grandes partidos europeus, à esquerda ou à direita, não muda de acordo com as suas escolhas. Em Portugal, a luta por uma alternativa à ortodoxia alemã (que a Comissão ministra diligentemente) é ameaçada quotidianamente pela “confiança dos mercados”, pelas agências de rating e pelos recados nada subtis das instituições europeias. “Creio que caminhamos para uma instabilidade política profunda”, diz à AFP Jean-Michel de Waele, da Universidade Livre de Bruxelas.

A desconfiança, como diz também Torreblanca, não é apenas a sul. A Finlândia foi um dos países mais recalcitrantes na ajuda financeira aos seus parceiros periféricos. Hoje, a braços com uma recessão resultante da queda do comércio com a Rússia e com a chegada dos refugiados pela rota do Norte, assiste ao nascimento de um novo movimento chamado Soldados de Odin, criado para patrulhar as ruas e proteger os finlandeses dos refugiados. Escolheu um guerreiro viking como símbolo e está a contagiar os países bálticos e a Noruega. A própria confiança dos alemães na liderança da “mulher mais poderosa do mundo” parece esgotar-se, apenas porque rejeitam a sua política de “braços abertos”. A chanceler procura desesperadamente a solidariedade europeia para partilhar o fardo e aliviar a pressão, mas sem grande sucesso. As eleições em três länder no próximo mês de Abril serão um teste decisivo à sua liderança, que será medida pela subida eleitoral (ou não) da Alternativa para a Alemanha. O jogo político já não se trava apenas entre os partidos do sistema, até na estável e consensual Alemanha.

O European Social Survey, que liga vários think tanks europeus, alertava em 2013 que a crise “não só desgastou as condições económicas objectivas de muita gente como criou uma onda de ansiedade sobre o futuro dos respectivos países, mesmo daqueles que não sofreram directamente a austeridade”, abalando a confiança nas elites políticas. Como escrevia a The Economist a propósito da Irlanda, “a fragmentação da política é o novo estilo europeu”. Já em Novembro de 2011 a revista britânica avisava que “os esforços para salvar o euro não podem manter-se indefinidamente contra a vontade dos eleitores”. Parecia óbvio, mas aconteceu o contrário. Donald Tusk, o presidente do Conselho Europeu, colocava assim o dilema essencial: “Como construímos um novo modelo de soberania de forma a que as soberanias nacionais necessariamente limitadas não se sintam dominadas pelos grandes países como a Alemanha?” Ainda não há resposta. Sem a confiança dos cidadãos, tudo se torna muito mais difícil, incluindo, a prazo, a confiança dos mercados.     

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A crise de refugiados divide a Europa DIMITAR DILKOFF/AFP